sábado, 15 de fevereiro de 2020

O casal de velhos, as escadas do metropolitano e a garrafa

Estava eu a chegar à entrada do Metro, nos últimos degraus da escada de acesso, reparo que um
senhor, já de muita idade, agita-se em cima de titubeantes pernas, atrapalhado com a iminência dos degraus rolantes que se vão desfazer em chão movediço. A cara contrai-se num esgar medroso, que mostra bem o que lhe vai no corpo e na alma.
Traz um saco grande de compras na mão esquerda, tentando equilibrar-se com a direita no corrimão andante que também lhe foge. Quase cai quando põe os aflitos pés em chão finalmente parado.
Instintivamente, esboço um gesto de apoio, mas, à distância que ainda estava do senhor, eu não chegaria a tempo de o ajudar.
Dois degraus atrás, ainda sobre eles a rolar, firme nas duas pernas, a mulher do senhor tão atrapalhado, ia olhando, aparentemente impávida, o marido. Também levava um saco de compras na mão.
No mesmo momento em que fiz o gesto reflexo de ajuda para o senhor, ela diz:
«Cuidado, homem. Olha a garrafa, não partas a garrafa.»
Não disse mais nada, o senhor nada disse nem lhe disse.
Eu fiquei um pouquinho a olhá-los, ele um bocadinho à frente, ela um bocadinho atrás, caminhando devagar. Calados, sem dizerem nada um ao outro, sem se olharem.
Pareciam resignados à sua sorte, à sorte do que acontece dia após dia em gente das suas idades, de solitárias e pobres vidas a dois. Naquele instante, ele resignado à sorte de não ter caído nas escadas rolantes. Ela resignada à sorte da garrafa se ter conservado inteira.
Entrei na galeria da estação do Metro e fui à procura do elevador para a superfície, será que estaria avariado? Não, não estava avariado - só que os faria sair num passeio que os deixava um bocadinho mais longe do passeio de casa e os obrigava a atravessar um cruzamento com semáforos complicados.
Que opção tomarei eu quando tiver a idade dos senhores?...