segunda-feira, 27 de abril de 2009

O que os ovos-moles tiveram de mudar para poderem ficar precisamente na mesma

Fui buscar esta notícia à edição on line de hoje do Público:

Foram vários os caprichos da União Europeia que, por exemplo, roubou aos ovos-moles a possibilidade de se aconchegarem em tabuleiros de madeira e os fez acamar em desconfortáveis grelhas de inox. Mas este mês chegou a hora da retribuição. As mais antigas e tradicionais doceiras, como a dona Silvininha, podem dormir descansadas, que a receita original já está protegida pela lei.
Por Graça Barbosa Ribeiro (texto) e Paulo Pimenta (fotos), 27.04.2009.

De touca a prender-lhe os cabelos, com a bata vestida e protecções de plástico nos sapatos, Maria João Santos, de 35 anos, franze os olhos num sorriso. "Deste lado a São, a encher as formas; ali, ao canto, o avô Carlos, a prensar as hóstias; e aqui a avó Quinhas, já muito velhinha, a recortar..." À medida que fala, vai apontando para diferentes lugares vazios em torno de uma mesa de tampo asséptico. Mas o que ela vê a unir todas aquelas personagens já desaparecidas é uma pesada e centenária mesa de madeira.
Dona Silvininha (que é como todos tratam Silvina da Silva Raimundo, frágil nos seus 81 anos de idade) segue com o olhar aquilo que o dedo de Maria João aponta. Detém-se na mesa – "Só para a lavar era meia hora, todos os dias, ao fim da tarde. Meia hora a esfregar, a esfregar, com sabão azul, até ficar impecável", diz. E depois cala-se.
Por momentos, quedam-se ambas nesse outro tempo, as duas mulheres que à vez – uma há 27 anos e outra há meia dúzia – arregaçaram mangas para manterem viva uma das mais antigas casas de Aveiro de produção artesanal de ovos-moles.
Ainda travam batalhas juntas e ambas celebraram a última, ganha a 8 de Abril, quando se soube que os ovos-moles se tinham tornado o primeiro doce conventual do espaço comunitário a integrar a lista de produtos agrícolas e alimentares com a denominação de "indicação geográfica protegida".
Significa isto que a legislação europeia – que lhes levou as colheres de pau, os alguidares de barro vidrado e a tal mesa de madeira – pagou, finalmente, o seu tributo, passando a assegurar que não se produz aquele doce senão aqui, na região de Aveiro; e que ninguém o confecciona senão como nesta casa, da forma tradicional. Mas não é nisso que pensam agora, que se calam as duas e vêem, quando olham para a mesa de tampo asséptico, aquilo que mais ninguém vê.
O silêncio é curto. Maria João dá uma gargalhada e abana a cabeça, como que a afastar a memória guardada pela garota que corre de um lado, numa brincadeira perigosa, a rasar os alguidares de água quente e as panelas de cobre onde o doce de ovos ainda borbulha, a ferver.
A garota cresceu: Maria João é agora a gerente da casa. Aquele espaço, antigamente uma saleta da residência da família de Silvininha, a proprietária, tem hoje o nome de "laboratório"; e nem os filhos das empregadas (como Maria João, em menina) nem quaisquer outras crianças (como os netos de Silvininha, mais tarde) podem entrar, quanto mais correr, por entre as doceiras, que hoje trabalham escondendo as faces rosadas por trás de severas máscaras de cirurgião.
Mas nem tudo mudou. Apesar do estrito cumprimento das normas de segurança e de higiene alimentar (que fizeram deitar paredes abaixo, renovar pisos, substituir tampos e queimar os enormes tabuleiros de madeira), este centro de produção artesanal está longe da imagem que associamos à palavra "laboratório".
Segredo dos conventos
De alguma forma, o espaço ainda tem alguma coisa de casa de família, o que é reforçado pela localização quase secreta e aparentemente nada favorável ao único posto de venda dos doces que ali se produzem. "No centro da cidade de Aveiro, procura a Igreja de Vera Cruz, corta à esquerda e percorre toda a rua também pelo passeio esquerdo até encontrar uma porta de garagem branca", indicam.
Felizmente, há uma placa discreta na parede: "Maria da Apresentação da Cruz, Herdeiros." Dona Silvininha acrescentou-lhe "casa fundada em 1882", um bocadinho ao acaso. "Até talvez seja mais antiga", diz, na saleta de entrada, a antiga garagem.
A parede da direita foi demolida, para construir o balcão onde está exposta a doçaria. E o lugar antes ocupado pelo automóvel está hoje decorado com fotografias de família, que contam a história da casa que é também a história de mulheres de diferentes gerações. Rezam a História e a lenda que foi por ocasião da extinção das ordens religiosas que a receita dos ovos-moles se escapou dos conventos. Talvez se tenham sentido desobrigadas de manter o segredo as senhoras que antes ajudavam as freiras a dar uso aos ovos que ali entravam com fartura, para pagamento de rendas.
Quantas foram as ajudantes que nas suas casas ousaram repetir os gestos das religiosas, cozinhando o doce alaranjado e envolvendo-o, a seguir, na massa de que eram feitas as hóstias? Não se sabe ao certo, apesar do esforço de investigação feito por iniciativa da Associação dos Produtores de Ovos-moles de Aveiro, à qual cabe, também, o mérito do reconhecimento da marca pela União Europeia.
Certo é que Silvina da Silva Raimundo foi um dos elos da cadeia. E que, antes dela, o foram a sua sogra, Maria da Apresentação da Cruz; e a tia desta, Odília dos Anjos Soares, que por sua vez aprendera a fazer ovos moles, conta-se, com Maria Encarnação Mourão, que em solteira trabalhou num convento e depois, por via do casamento, se tornou proprietária de uma confeitaria fina.
Era para a Confeitaria Mourão, mais conhecida por "Costeira", que trabalhava Odília; e foi para a mesma casa que depois produziu a herdeira da receita e do negócio, a sua sobrinha Maria da Apresentação, que na terra era conhecida por "dona Marquinhas".
Silvina anuncia que vai contar uma história triste. A do dia, há 27 anos, em que a família soube que a "Costeira", a única para onde produziam ovos-moles, ia fechar. Chocada, dona Marquinhas avisou que, se tal se confirmasse, morria. E o que é certo, diz Silvina, é que a sogra não resistiu mais um mês, depois de a confeitaria encerrar.
Foi entre uma coisa e outra que se deu o acontecimento improvável de Silvina, professora primária numa escola a dois passos de casa, ter prometido à sogra, que via a morrer de desgosto, que desse por onde desse havia de salvar a receita e o negócio. Uma imprudência, achou o marido de Silvininha, o senhor Carlos, que depois da morte da mãe se opôs ao cumprimento da promessa o quanto pôde, mas não o suficiente.
Silvina da Silva Raimundo diz que teve a sorte a seu favor. A conceituada Maria de Lourdes Modesto já revelara, num dos seus livros, que os melhores ovos-moles de Aveiro, vendidos na "Costeira", eram feitos na casa de Maria da Apresentação. E talvez isso tenha contribuído para que o encerramento da confeitaria e a morte da doceira tenham despertado o interesse da Rádio Renascença, que mandou um repórter entrevistar Silvina. Dali à RTP foi um pulo. E assim começaram a surgir os clientes – os da terra e os forasteiros – que, saudosos dos "melhores ovos-moles de Aveiro", procuravam a Igreja de Vera Cruz, seguiam, atentos, pelo passeio esquerdo, e batiam, espantados, à porta da garagem, passando, finalmente, entre o automóvel e a parede, até chegar à segunda porta, a do lugar de fabrico.
Peixes, búzios e conchas
Foi uma luta. E dona Silvininha não quis que outros, depois dela, tivessem de travar uma também; ou que, pior do que isso, o não fizessem e a casa desaparecesse com a sua morte. Os filhos, médicos, não tinham vocação para o negócio, pelo que não asseguravam a sua continuidade. Mas Maria João, demasiado crescida para correr por entre os aventais das doceiras, mantivera-se, interessada e prestável, sempre por perto, ao longo de toda a adolescência.
Começara por ajudar, apenas; depois, já adulta, por lá trabalhar, estudando ao mesmo tempo; até que, um dia, a pedido de Silvina, se entregou definitivamente à casa e à causa. A legislação trazia novas exigências e ela abandonou o curso superior de Contabilidade para se dedicar, a tempo inteiro, à mudança que era necessário fazer para que o essencial – a receita tradicional – ficasse precisamente na mesma.
O seu dinamismo impressionou Silvina. Apesar do aspecto frágil, não era mulher para esperar que, no leito de morte, alguém lhe prometesse salvar o negócio; ou para arriscar que ninguém o fizesse... De maneira que, para além dos filhos e dos netos, fez suas sócias Maria João e Conceição Laranjeira, que ali entrou como empregada aos 12 anos de idade, e é hoje, aos 48, uma das mais experientes doceiras de Aveiro.
São elas que, junto de dona Silvininha, acabam por baixar as máscaras que lhes tapam os rostos, como quem baixa as armas. Se hoje a cadeia de produção pode ser toda fotografada – do partir dos ovos, ao recorte dos peixes, búzios e conchas, passando pela cozedura em panela de cobre – é porque, actualmente, todos os produtores sabem que não podem dispensar a promoção dos seus doces, confessam.
Porque, na verdade, diz Conceição Laranjeira, o enchimento das formas, o prensar das hóstias e o recorte dos doces costuma ser feito à tarde, por todas elas, em redor da mesa. "Como antigamente", acrescenta Maria João, que diz que "parece que os está a ver", aos velhos patrões da sua mãe, a quem chamava avós, e à velhinha Conceição, que morreu no posto de trabalho com 90 anos feitos. Calam-se as três, a sorrir. E, depois, Maria João franze os olhos e aponta: "Deste lado a São, a encher as formas; ali, ao canto, o avô Carlos, a prensar as hóstias; e aqui a avó Quinhas..."

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